Correio Popular Campinas: Entendimento de bem de família

 Nos termos do Código de Processo Civil, o devedor deve responder com seu patrimônio para saldar suas dívidas, o que significa que, sofrendo uma execução, estará sujeito à penhora de contas bancárias, imóveis, veículos e demais bens que detenha. Mas o que fazer quando essa penhora alcança a residência do devedor? A Constituição Federal, quando dispôs sobre os direitos básicos garantidos ao cidadão, foi clara em delimitar que todos têm direito a moradia e a dignidade da pessoa humana. E, em harmonia com essa proteção, a Lei 8.009/90 dispôs sobre a impenhorabilidade do bem de família.

 O bem de família, nos termos do artigo 1º  do mencionado diploma legal, é “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar”. E residência, nos termos do artigo 5º , é “um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente”. Estabelecida a proteção, ao passo que o devedor sofre tentativas de penhora da residência, poderá defender-se, desde que demonstre que de fato o imóvel lhe serve para residência, com o registro da natureza do bem na matrícula do imóvel, conforme determina o artigo 1.714 do Código Civil, ou até mesmo com contas de consumo e faturas que demonstrem que os dados do devedor estão atrelados ao endereço do imóvel.

Todavia, essa proteção não é absoluta, e em hipóteses específicas pode ser mitigada. Uma dessas hipóteses previstas no artigo 3º da Lei 8.099/90 e sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula 549) é a impossibilidade de se alegar a impenhorabilidade do bem de família quando o devedor presta fiança em contrato de locação.

Prestar fiança em contrato de locação significa dizer que o fiador garante a obrigação assumida pelo locatário (aquele que locou o imóvel), ou seja, caso este não cumpra com o pagamento, o fiador deverá adimplir a dívida. E nessa condição, a residência do fiador é um bem que poderá ser sacrificado para quitar o débito, uma vez que o mesmo anuiu com o risco da fiança. Segundo a jurisprudência, a possibilidade de penhorar o imóvel residencial do fiador se presta para defender a própria moradia, quando a locação garantida tem como finalidade a residência, ou seja, uma moradia pela outra. Todavia, é de se pensar se o mesmo ocorre na locação comercial.

A locação comercial se presta para desenvolvimento de atividade empresária. Portanto, nada tem a ver com a proteção constitucional à moradia e à dignidade da pessoa humana, não fazendo sentido sacrificar tais princípios para saldar débito com outra finalidade. Nesse sentido, apesar de entendimentos pacificados quanto à possibilidade de penhorar a residência do devedor quando se trata de fiança prestada em contrato de locação residencial, como acima mencionado, novas decisões judiciais surgiram em relação à fiança prestada em contrato de locação comercial.

 A ministra Rosa Weber, da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, brilhantemente defendeu, no RE nº 605.709, que “a dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constrição e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Interpretação do art. 3º , VII, da Lei n. 8.009/1990 não recepcionada pela EC n 26/2000. 2. A restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial tampouco se justifica à luz do princípio da isonomia. Eventual bem de família de propriedade do locatário não se sujeitará à constrição e alienação forçada, para o fim de satisfazer valores devidos ao locador. Não se vislumbra justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador, sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito à moradia”.

Tal entendimento abriu caminho para uma nova perspectiva de defesa, com muitas outras decisões judiciais no mesmo sentido, demonstrando que nenhum entendimento é estático, e mesmo se tratando de exceção legal, o silencia da lei, nesse caso sobre a natureza do contrato de locação (residencial ou comercial), deve ser objeto de discussão, a fim de evitar interpretações demasiadamente literais, e que podem ferir outros diplomas legais.

Assim, é muito bem-vinda a tese de impenhorabilidade da residência/bem de família do devedor, quando se fala em fiança prestada em contrato de locação comercial.

Gabriela Esposito da Silva Ribeiro é advogada da Dasa

Artigo publicado no jornal impresso Correio Popular